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quinta-feira, 12 de abril de 2018

Cidadania & Civilização, o RPG

Estive analisando um jogo de estratégia econômica, não-violento, de Atari 2600 chamado M.U.L.E., que pode ser considerado o ancestral de minha série de jogos eletrônicos favorita, Civilization e Alpha Centauri, e talvez até de jogos eletrônicos de estratégia em tempo real como Warcraft, Starcraft, Command and Conquer, Stronghold e Braveheart, e até da versão complexa de War/Risk, o jogo de tabuleiro Supremacia, em suas mecânicas de gerenciamento de recursos.

Infelizmente quase todos esses descendentes do ramo estratégico econômico (exceto o Supremacia, que possui cotações dos valores dos recursos) acabaram só assimilando os tipos de recursos (comida, energia e mineral) e voltando a incluir os confrontos bélicos como foco em vez da negociação de preços dos próprios recursos no mercado do jogo.

Então pensei como seria o sistema de RPG D20 de Dungeons & Dragons se fosse baseado nesse tipo pacífico de estratégia em vez dos jogos de estratégia de guerra? Como ficariam as regras se sua mecânica central fosse a negociação (e o consenso) em vez do ataque e defesa?

Bom, para começar, nesta realidade paralela que estou propondo, os livros de RPG não teriam mais um capítulo de "combate", e as listas de equipamentos trariam meios de produção e de distribuição de recursos em vez de armas e armaduras, ou seja, em vez de rolar diferentes dados para causar destruição e mortes, estes mesmos dados poliédricos (d4, d6, d8, d10 e d12) seriam rolados para determinar quantidades de mercadorias construídas ou de atendimentos prestados, o que já seria uma bela manifestação do Princípio de Não-Agressão do Liberalismo econômico.

Outra grande diferença é que as Perícias pacíficas seriam detalhadas com direito a essas rolagens de efeito construtivas e condições laborais e de estoque (em vez de Pontos de Vida), enquanto qualquer habilidade combativa (ataque corporal, a distância ou poderes ofensivos) seria um teste simples com a livre descrição dos resultados pelo Mestre do Jogo em termos legais de agressão a bens jurídicos (integridade física, vida, honra, propriedade privada, etc), como deve ser o Estado de Direito que acreditamos ter superado o Estado de Natureza em que ainda vivemos em certa medida.

E qual seria o capítulo mais importante do manual do jogo? O "mercado", é claro, com a cotação de valores dos recursos mantida pelo Mestre do Jogo (o "Banco"?) sendo alterada em "pregões" de testes resistidos entre "fornecedores" e "compradores", com modificadores por escassez (necessidade), excedente de produção e quantidade de concorrentes.

Contudo, a produção e o comércio não seriam as únicas formas de os personagens obterem ganhos neste sistema de jogo, afinal, o próprio jogo precursor M.U.L.E. permitia lucrar com a captura de fugitivos escondidos nas montanhas e com apostas em cassinos no final dos turnos. Para integrar isso à ideia de um mercado autorregulado, talvez a captura se tornasse em recompensas pela "fiscalização" e denúncia de práticas desleais de mercado por parte dos próprios personagens-jogadores, e a jogatina se tornasse em "anúncios" com ofertas e oportunidades de invenções, prêmios e informações privilegiadas a serem descobertos para gerar renda extra ao jogador, assim como as recompensas pelas aldeias perdidas encontradas pelos jogadores de Civilization.

As aventuras seriam expedições em busca de melhores fontes de recursos ou melhores pontos comerciais para ocupar e construir benfeitorias, e as tabelas de "encontros aleatórios" seriam substituídas por tabelas de "acontecimentos" naturais ou sociais com impacto no mercado. Os chefões do jogo continuariam querendo dominar o mundo, só que por meio de cartéis, monopólios, monopsônios (único comprador ditando os preços para todos os fornecedores de um mesmo recurso), do abuso de alguma falha de mercado (informações assimétricas, mercados incompletos ou inexistentes e externalidades negativas, como a poluição, por exemplo) ou de privilégios por intervenções coletivistas (barreiras de entrada, controle de preços, subsídios, taxações, etc).

O livro dos monstros talvez virasse o "livro dos recursos e matérias-primas", descrevendo jazidas, espécimes da fauna e da flora e fontes de energia, onde encontrá-las e quais as dificuldades para poder aproveitá-las de forma vantajosa.

As classes de personagens teriam funções sociais na civilização em vez da guerra e da pilhagem, por exemplo, "guardiões" a fiscalizar infrações e a proteger e resgatar os cidadãos desamparados, "provedores" a negociar e gerenciar meios de produção de sua propriedade, "operadores" a prestar serviços especializados com qualidade, e "mediadores" com autoridade para solucionar conflitos e sabedoria para ensinar a sociedade a progredir.

Com certeza surgiriam várias versões e sistemas concorrentes do jogo original em diferentes ambientações, futuristas, mágicas, históricas, sobrenaturais e até mesmo infantis, com sistemas mais simples e temas engraçadinhos. Talvez víssemos mais adaptações de novelas e comédias de situação do que de filmes de ação ou de terror. E nesta realidade paralela, F.A.T.A.L. talvez fosse um RPG sobre o tráfico de escravas sexuais entre povos de fantasia.
A motivação por trás desse jogo também seria vivenciar uma realidade diferente da cotidiana, só que em vez de se vingar da exploração e da falta de liberdade descontando a fúria em monstros e vilões (como se fosse um deles), a ideia seria experimentar um mundo melhor, e talvez aprender a viver em paz num possível paraíso, em vez de continuar lutando até a morte em infernos cada vez piores. Há desafio em viver bem e saber partilhar de forma justa.

4 comentários:

  1. Muito bom o texto, acho que sempre procurei um jogo mais parecido com o que você descreveu, algo a mais do que apenas, matar, pilhar, destruir.

    Um jogo onde o controle de fronteiras fosse feito por acordos diplomáticos, reinos fossem unificados por casamentos, contratos de comércio sendo realizados e deixando um território rico, algo diferente do que se tem hoje, talvez deixando a guerra para último recurso e de forma que fosse vista também de forma um tanto quanto desumana mas estratégica (talvez quando sua população ficasse muito grande uma guerra o ajudasse a controlar o crescimento populacional).

    Sei lá, viajo nessas coisas!

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    1. Como DM de D&D você com certeza já deve ter ouvido falar de Birthright, uma tentativa de fazer isso que você descreveu durante a segunda edição de AD&D, porém sem continuidade nas novas versões, nem tradução em português.

      Para a 3ª edição foi lançado o suplemento Dinasties & Demagogues, que trata de intrigas palacianas.

      Tenho vontade de testar essas regras numa ambientação de colonização cósmica por terraformação e transgenia, com uma sociedade pós-monetária, para vislumbrar um possível futuro para a humanidade.

      Parece-me que existe demanda para um jogo como o que propus no texto, apesar do ceticismo dos tradicionalistas.

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  2. Muito bom o texto, não faltou inspirações ao nobre escritor, já pensou em criar tal jogo? Quem sabe uma oportunidade de mercado! Seria um de seus jogadores, boa ideia

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    1. Pensei sim em desenvolver o jogo. O próprio artigo foi escrito a partir de um esboço das regras. Os comentários que estou recebendo aqui e no facebook estão me ajudando a delinear as possíveis narrativas e ambientações para o jogo. Com certeza vou precisar de jogadores para playtest quando a primeira versão estiver prototipada. Obrigado pelo incentivo!

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